Entrevista com Enrico Zini, desenvolvedor do Debian

O site Free Software Foundation Europe fez uma entrevista com um de seus membros, Enrico Zini. Enrico também é um desenvolvedor do Debian e se ocupa com muitas outras coisas. Segue abaixo a tradução. Para correções, manda bala nos comentários.

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Enrico Zini é um Parceiro da FSFE há muito tempo e proeminente desenvolvedor do Debian. Ele esteve envolvido em muitos projetos diferentes relacionados com o Software Livre e está profundamente preocupado com questões sociais. Tive uma boa conversa com Enrico e perguntei-lhe sobre algumas de suas causas favoritas.

Stian Rødven Eide: Você é um colaborador antigo do projeto Debian, especialmente a respeito de pacotes. Você pode nos dizer, brevemente, qual é a sua principal responsabilidade no projeto Debian?

Enrico Zini
: Eu cuido principalmente dos Debtags, um novo sistema de organização para pacotes Debian. Essa é minha principal responsabilidade oficialmente.

SRE: Vários dos seus projetos em Software Livre lidam com dados meteorológicos. O uso do Software Livre em instituições meteorológicas é elevado?

EZ
: As instituições meteorológicas são diversificadas, variando de pequenas estações regionais a estações nacionais e militares, ou até instituições internacionais. A escolha do software depende de muitos fatores, muitas vezes até de fatores políticos. Dito isto, definitivamente vejo uma crescimento do Software Livre com várias estações começando a publicar seus próprios códigos como Software livre. Um dos exemplos mais notáveis é nada menos que a ECMWF, que lançou recentemente a maioria de seus software sob a GPLv3 (note que mesmo quando alguns links mencionam a necessidade de uma taxa de manipulação de £100, na maioria dos casos, o software que você receberá está licenciado sob uma licença livre).

Os Estados Unidos estão agindo melhor, graças às melhores leis de acesso a informações que obrigam a publicação muitas informações governamentais como domínio público, e se você acessar o NOAA (a agência americana equivalente à ECMWF ), você será capaz de baixar tanto o código-fonte quando as informações - freqüentemente publicadas como domínio público. Também por causa disso, os Estados Unidos tendem a usar formatos livres com o HDF5 ou o NetCDF; enquanto na União Européia, por exemplo, a fim de decodificar as imagens do satélite Meteosat, você ainda necessita de uma sórdida biblioteca de descompressão de ondas curtas que é grátis para baixar, até mesmo o código-fonte, então você pode recompilar no seu sistema, mas ela tem uma desagradável licença e está pesadamente sobrecarregada de patentes.

Espero que as recentes mudanças nas políticas de distribuição da ECMWF sejam o primeiro dos vários passos na direção correta e que estamos indo na direção de um sistema onde os cidadãos da União Européia possam acessar as informações que no momento elas precisam pagar para adquirir.

SRE: Você vem apoiando expressamente a presença das mulheres no Projeto Debian. Você sente que a situação das mulheres no Software Livre melhorou durante os últimos anos?

EZ
: Creio que há, ao menos em alguns grupos, uma melhor atitude: é bastante difícil soltar uma piada sexista em alguma das listas principais de email do Debian, e acho que é uma coisa boa. Muito mais importante do que isso é que enquanto as mulheres sempre foram parte das inovações na computação de um jeito ou de outro, agora, mesmo nos projetos em Software Livre, vemos as mulheres assumindo a liderança como, no caso do Debian, entre os desenvolvedores do KDE no Debian ou entre a equipe Debian Game. Isso é muito importante porque uma mulher numa sociedade machista como, digamos, a Itália, pode ver que sim, isso pode ser feito e pode, portanto, perseguir seus próprios interesses sem acreditar que ela é "louca" ou em qualquer outra coisa que a sociedade machista gostaria que ela acreditasse.

Dito isso, há muito trabalho a se fazer. Alguns grupos de alto nível estão fazendo direito e podem criar um exemplo importante, mas ainda existem muitos grupos pequenos, mais locais, onde a situação está terrível.

SRE: O que você acha que podemos fazer para tornar o envolvimento em projetos de Software Livre mais atrativo para as mulheres?

EZ
: Digamos que, por exemplo, estou num canal italiano do Debian no IRC e as pessoas estão conversando com piadas sexistas, aí eu digo "Parem com isso, seus idiotas, o que vocês acham que as pessoas do DebianKDE diriam lendo o que vocês acabaram de escrever?"

Entretanto, acho que o sexismo é um dos muitos tipos de discriminação que podem existir. Definitivamente, é uma discriminação claramente visível. Mas alguns projetos podem ter, talvez não intencionalmente, discriminação contra pessoas que não estão sempre no IRC, ou contra pessoas que não são positivas o suficiente nas listas de email, ou contra pessoas com internet lenta, ou contra colaboradores não técnicos. Às vezes até mesmo pessoas em fusos-horários diferentes podem ser discriminadas. Acredito que deveríamos evoluir na direção de uma atitude que nos permita fazer dos projetos em Software Livre algo mais atrativos para as mulheres, e também para todos que possam ser um colaborador valioso.

SRE: Você é co-autor de um estudo amplamente baseado em experiências da Keynes High School, em Bologna, que adotou cedo o Software Livre. Você, inicialmente, era um estudante na escola e e acabou se envolvendo como um professor ocasional, pesquisador e apoiador do sistema. Apesar da resistência inicial, houve grandes dificuldades na implementação do Software Livre na escola?

EZ
: Até agora, as únicas dificuldades que sobraram são os professores. Alguns estão motivados para usar Software Livre e fazem coisas ótimas. Mas a maioria dos professores vem aprendendo a usar o Microsoft Office e temem que se eles usarem outro ambiente, seu processo de aprendizagem será inútil (o que é falso), ou que os estudantes terão mais confiança do que o professor a não ser que os professores usem a suíte que eles conhecem melhor (o que também é falso; sempre haverá alunos mais confiantes do que os professores com QUALQUER suite de software). Portanto, esses receios de não ser adequado para ensinar acabam transformando o "software diferente" num bode expiatório. A escola teve de manter um laboratório Microsoft Office extra - e custoso - para resolver essa situação.

Mas a experiência na Keynes não acabou. Por exemplo, recentemente deram uma nova vida ao laboratórios antigos com um pequeno investimento graças às configurações LTSP, e quando outras escolas com pequenos orçamentos viram isso, elas pediram aos técnicos da Keynes para ajudá-las a fazer o mesmo. E agora temos várias escolas primárias e secundárias espalhadas na zona rural de Bologna que estão rodando Software Livre e estão muito felizes com seus antigos laboratórios de máquinas Pentium II que se tornaram estações de trabalho modernas com um mero investimento de 4 ou 5 mil euros num novo servidor LTSP. Isso realmente mostra as promessas do Software Livre acontecendo de verdade: Uma vez que você pega pessoas habilidosas e coloque-as no controle da tecnologia, os problemas se resolvem.

SRE: Qual é o seu conselho para professores e administradores de sistemas que querem expandir o uso do Software Livre em escolas e universidades?

EZ
: Meu maior conselho é achar outros professores e administradores de sistemas que já fizeram isso e manter contato. O que mais ajuda é saber que você não está sozinho. Você pode compartilhar os seus problemas e especialmente as soluções. Fazer uma lista de emails privada para anúncios e combinar com todos para postar todos os problemas que precisam resolver, todas as coisas legais que conseguiram fazer. Assim, se outros tiverem um problema parecido, saberão a quem perguntar.Digo privada pois algumas vezes para fazer coisas legais, você precisa pensar maliciosamente, e você não quer que as pessoas não digam que elas fizeram algo bom porque temem que isso seja indexado pelo Google. Ou ainda melhor: se as pessoas têm preguiça para escrever, organizar reuniões regulares com outros professores ou administradores que têm a mesma idéia com cerveja, vinho ou qualquer outra coisa parece uma boa idéia.

SRE: Você participou de várias edições do European Social Forum e até iniciou o Bologna Free Software Forum. Você vê uma ligação entre esse tipo de espaço social e o modo como as comunidades do Software Livre funcionam em geral?

EZ
: Certamente vejo uma ligação porque ambas comunidades quebraram barreiras. No Debian, temos pessoas que trabalham em corporações, talvez algumas em ambientes militares, temos ativistas políticos, anarquistas e temos pessoas profundamente religiosas. Todas essas pessoas trabalham juntas no Debian, talvez jamais se dariam bem na vida real. Mas isso mostra que já existe espaço para quem vem dos fóruns sociais nas comunidades de Software Livre e, por experiência própria, esse espaço não está vazio, ou seja, já existe uma sobrecarga. Quem diria que alguém na Equipe de Segurança no Debian não teria adquirido conhecimento por cuidar da segurança de servidores de email usados por ativistas políticos, por exemplo?

Um grande problema que vejo no momento, ao menos em alguns grupos que conheço na Itália, é o problema de criar um melhor entendimento da Internet em ambientes de fóruns sociais. As pessoas de um exemplo imaginário "Liga do Fazendeiros Orgânicos", teriam trabalho suficiente para fazer do que ter que aprender a separaremails normais de spam ou phishing , por exemplo, ou planejar a migração para Software Livre. Ativistas costumam viver ocupados ao limite de enlouquecer e isso normalmente prejudica a adoção de novas tecnologias ou do Software Livre ou de novas técnicas de comunicação - o que é uma vergonha.

SRE: Você acha que a mentalidade e métodos do Software Livre podem nos ensinar sobre interação social e política?

EZ
: Acho que ele nos ensina a manter em mente os nossos objetivos. Eventualmente, o software resolve um problema, mas se você apenas passar seu tempo fazendo algo complexo que não funcione, você não se torna um desenvolvedor de Software Livre. Interações sociais e políticas têm, por experiência própria, uma tendência de criar sistemas que se tornam complexos, onde as discussões sobre uma questão social eventualmente acabam em discussões sobre o grupo em si, ou se tornam nada mais do que discussões, discussões e não se chega a lugar algum. Assim como no Debian nós temos ativistas e pessoas que trabalham em corporações trabalhando junto, no protesto de Genoa, em 2001, chamei tanto grupos de anarquistas quanto escoteiros para fazer o protesto porque ambos queriam a mesma coisa. Gostaria de ver isso de novo. Essa cooperação ainda está viva no mundo do Software Livre e talvez isso sirva de inspiração.

SRE: Um dos projetos decorrentes do Bologna Free Software Forum é o Comodino, que preconiza a critica ao consumo de produtos de TI. Ele envolve pensar em termos de sustentabilidade e ética quando adquirir produtos de TI, o que, obviamente, é um forte argumento para escolher o Software Livre. Como o projeto está indo?

EZ
: O projeto ainda está vivo e está cumprindo o seu papel. Provavelmente, apenas obtivemos uma mudança cultural limitada a respeito da tecnologia entre nossos usuários, principalmente porque a manutenção do servidor tem nos mantido ocupados o suficiente para sermos capazes de participar de outras iniciativas. Entretanto, estamos hospedando 50 websites e incontáveis listas de email, dando a vários grupos uma chance para ter presença online, sem propagandas em suas listas de emails , com acesso aos arquivos da lista e todos esses benefícios indescritíveis de ter um sistema gerenciado por pessoas que gostariam de ter, como você, sucesso em seu objetivo social ao invés apenas pegar o seu dinheiro e minimizar os problemas. Nós também estamos fazendo a transmissão de uma rádio real e algumas rádios online.

SRE: Portanto, o objetivo primário é fornecer serviços para projetos sociais?

EZ
: Sim. No fim das contas, é um servidor Xen com DNS, Postfix, Sympa para listas de emails e um LAMP DomU hospedando vários pequenos clones PostNuke, ou qualquer outro PHP horrível que as pessoas gostam de criar hoje em dia. Mas, humildemente, ele funciona para muitos grupos pequenos.

Fonte: ciaran@Fellowship of FSFE
 
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